Era o ano de 1996, quando após uma sutil provocação de meu técnico Zezé (
1998), eu tinha decidido levar a sério aquilo e de alguma forma reuni todas as forças que achasse necessárias a uma investida inédita. Não imaginava, de fato, que pudesse chegar longe. Mas não no sentido de ir de um lugar a outro, nem foi preciso, quem sabe no sentido de intuir o que poderia ter descoberto quando numa fase tão importante, meus limites corporais foram explorados ao extremo. Mas aquela sutil provocação que qualquer técnico faria a seus atletas quando estão esmorecendo não foi simplesmente a moção principal. Haviam enraizadas diversas feridas psicológicas na minha infância em que era necessária uma desculpa qualquer, um “big-bang”, para intuitivamente, eu encarar aquele desafio, tendendo ao super-heroísmo de um lado e ao estado megalomaníaco de outro, como numa tentativa de eliminar o inimigo a todo custo.
Encarando uma temporada de treinamento intenso, elevando o volume de treino e incluindo diversos outros exercícios complementares como cerca de 30km de bicicleta e 01 hora de musculação por dia, gradativamente eu acompanhava meu próprio desenvolvimento através do relógio. Intui elaborar a seguinte forma de treinamento: toda segunda-feira, eu treinava aeróbio leve (1500m solto) com alguns tiros de 15m; nas terças-feiras, eu treinava série de 400m Livre, eram 08 de 400m para 30 segundos de descanso entre um e outro; nas quartas-feiras, treinava a tradicional série de 08 de 100m para 1min30seg cada; nas quintas, treinava 800m ou séries de 50m e nas sextas-feiras, eu treinava os 200m. Além disso, dupliquei o volume de específico de braçada e pernada, chegando a fazer 1200m de braçada e 2000m de pernada, claro em séries de 50m, 100m ou 200m apropriadas. Era assim toda semana, repetitivamente. Gradativamente, fui baixando as médias da série de 100m a partir de 1min17seg até chegar à média de 1min08seg cada. Nos 400m, fui baixando de 5min20seg até 4min54seg, cada um dos 08 tiros de 400m. Só que quando resolvi encarar essa temporada de treinamento, especificamente treinando sozinho, eu tinha “copiado” muitos dos treinos que Zezé passava pra equipe. Ele chegou até a passar alguns treinos pra mim no início da temporada, mas depois, eu não quis ficar dependendo dele e resolvi intuir meu próprio treinamento, elevando diversos tipos de esforços e volumes, copiados dos treinos de Zezé.
Acaso não seria tão arriscado treinar assim sozinho? Ainda mais encarando o desafio de dar uma resposta a Zezé?! Sim, foi muito arriscado, mas todo adolescente vive essa fase em que é preciso arriscar, apostar tudo para vencer ou começar do zero, mesmo que lhe falte uma voz presente dizendo: “Vai!...”. Houve a vez em que numa virada de crawl, meu calcanhar bateu na quina da borda e cortou meu pé. Na verdade, não houve uma vez, mas foram 03 vezes durante o ano, sim eu tenho 03 cortes nos calcanhares direito (02) e esquerdo (01), das vezes em que não calculei a velocidade que vinha e na virada de crawl, meus pés acabaram levando a pior. O último dos cortes foi justamente uma semana antes da única competição oficial importante que participei, os JERNs – Jogos Escolares do Rio Grande do Norte.
E a tamanha exploração de meus limites corporais também não recebeu de presente o dom da mutação genética. Existia um preço a pagar, e eu não comia banana o suficiente, tampouco ovos crus, guaraná ou maltodextrina. E esse preço além custar os acidentes dentro da piscina com os calcanhares, também custou câimbras no diafragma. Logo onde? Justamente, no diafragma, aquele músculo responsável pela respiração com contrações e alongamento do pulmão. Em meio a um treino de série de 400m, de repente após uma virada, ao girar a braçada, cadê a respiração? Foi terrível. Quando o diafragma trava, a sensação é como se algo estivesse puxando pra baixo da piscina e as braçadas tentando manter-se na superfície. Ironicamente, vi-me afogando. Pensei rápido, mantive a calma, afundei, dei o impulso no fundo pra pegar ar e fui voltando pra borda. Até que veio o professor Epitácio que me percebeu debatendo na água e me socorreu. Claro que eu recebi uma bronca dele, depois que falei do treinamento elevado que fazia além do que Zezé tinha passado. E o descanso? Realmente, eu não estava descansando como devia, daí a musculatura tender à estafa. Parei de treinar durante alguns dias e depois voltei gradativamente.
Daí que em meados do mês de agosto de 1996, resolvi encarar o relógio. E de repente, o cronômetro falhou naquele dia, quem sabe de tão cansado estava de marcar tempos. Eu estava sem opção de treinamento, com medo de voltar a treinar aquela série de 400m e ter outra estafa com câimbra no diafragma. Então, voltei a intuir outro tipo de treinamento: Como estava já próximo dos JERNs, era preciso o polimento, aquela fase de preparação delicada antes de uma competição. Resolvi fazer um tiro a 100% de intensidade nos 1500m, marcando o tempo como se fosse competição. Só que adicionei um detalhe: Coloquei o palmar, pois eu pensava que o palmar me ajudaria a ter noção do tempo que faria na competição, tendo em vista que sempre que usava o palmar, fazia tempo aproximadamente igual à distância treinada (variação de mais ou menos 02 segundos a partir dos 200m). E como o botão do cronômetro estava com defeito, usei o tempo da hora do relógio, pretendendo sair às 09h50min.
Era por volta das 09h48min da manhã, quando eu esperava dar a hora no relógio e marcar o tempo, pois de 09h50 até 10h00 são 10 minutos. O restante do tempo seria calculado com a diferença. Às 09h50min dei a largada a toda velocidade, bloqueando 03 braçadas pra 01 respirada nos primeiros 200m; daí então, soltei o braço, e a cada virada, intensificava as pernadas. Ao virar por volta dos 800m, me sobreveio um cansaço e pensei não conseguir terminar os 1500m. Porém, minha teimosia tinha sido muito bem educada por Zezé e fui nadando até me sentir o máximo cansado. Por volta dos 900m, resolvi parar nos 1000m, pois parecia uma contínua série de 50m sem parar e sem descanso em que eu não estava mais aguentando. Quando toquei a borda exatamente nos 1000m, vi a hora e eram: 10 horas 00 minuto e 46 segundos. Ou seja, diminuindo, o tempo obtido foi 10min46seg nos 1000m.
Depois de descansar um pouco, raciocinei: “Eita! Foi esse mesmo o tempo que fiz nos 1000m? Espera aí...” E fiz outro tiro, dessa vez de 800m. Também forçando no início e me cansando no final, já sentindo as pernas travando, ao tocar a borda vi o tempo de 09min42seg. Belisquei-me, claro, devia estar sonhando fazer um tempo desses, depois de 1000m intensos. Por último, não seria possível errar a contagem a cada 50m, se marcasse o tempo nos 200m, eu tinha que ter certeza do que estava nas minhas mãos (e nas pernas também). Marquei os 200m, também na intensidade de competição e fiz 2min18seg, que tinha sido o melhor tempo até então quando eu tinha competido nos Jogos Internos da ETFRN. Detalhe: esse tempo obtido após ter nadado os 800m e os 1000m.
Dias e meses se passaram, quando no final do ano, na última temporada do Campeonato Estadual, reencontrei um amigo que por vezes era meu adversário direto nas provas de 200m e 400m Livre, o Eunécio Júnior. Mesmo sem ter competido, eu tinha ido ao Campeonato Estadual só para apreciar e rever os amigos. Em meio a uma conversa antes de nadar os 800m Livre, o Eunécio citou que pretendia baixar o tempo em relação ao que ele tinha feito num campeonato norte-nordeste, alguns meses antes. Daí eu perguntei qual tinha sido a colocação dele e me admirei por ter dito que ficou em 04º lugar, que a série tinha sido forte e que os primeiros colocados provavelmente seriam chamados pra seleção brasileira. “E o cara que venceu fez quanto nos 800m Livre?”, perguntei. Aí o Eunécio me disse: “08min40seg”. O quê? 08 minutos e 40 segundos nos 800m? Sim, foi o que ele me disse. E ainda completou: O cara até bateu o recorde sul-americano nos 800m que era dele mesmo, que tinha baixado 04 segundos do recorde, na categoria juvenil 02, justamente a nossa categoria na época.
Daí eu raciocinei: Eu tinha feito 10min46seg nos 1000m, equivalente a uma média de 1min04seg a cada 100m. Multiplicando essa média por 08, chegamos ao tempo aproximadamente igual ao dos 800m (em média), ou seja: 08min36seg. Ora, se em média eu tinha feito o tempo de 08min36seg nos 800m, então eu tinha batido aquele recorde sul-americano no treino.
Se bem que as circunstâncias eram diferentes, o cara tinha acompanhamento técnico, tinha sido treinado adequadamente na fase de polimento e estava sob condições de uma competição em que diversas reações podiam acontecer. Já eu não tinha tido uma orientação técnica adequada, tampouco teria feito um polimento legal, carregando diversos acidentes nos calcanhares e câimbras no diafragma, além de não ter tido uma preparação psicológica conveniente.
Era tanto meu estado psicológico tendendo ao megalomaníaco que eu nem respondi ao que o Eunécio disse, fiquei calado na minha, guardando esse “segredo” do recorde e só trabalhando tal estado psicológico no consultório. Eu poderia ter conseguido essa e outras performances corporais talvez até melhores, mas psicologicamente eu mal saía das piscinas de Natal e alimentava a fantasia de obter índices de campeonatos importantes, sem um acompanhamento adequado. Era uma luta contra o vento.
De alguma forma ou de outra, o contraste de realidades era gritante para quem era visto como uma exceção à regra em relação à classe econômica. Uma performance foi obtida, galgada paulatinamente e demonstrada em diversas situações. Porém, diante de tantos outros grandes atletas do Nordeste e do Brasil que tenham conquistado performances até melhores naquela época ou de lá pra cá, de uma coisa eu estou convicto: Foi uma experiência incrível. Desafiar os limites e encontrar respostas que ficarão gravadas nas minhas juntas, nos meus ossos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe seu comentário...